sábado, 14 de agosto de 2010

A memória em risco


O fenômeno do turismo de compras nos free shops de Rivera está gerando uma visibilidade muito grande para a fronteira, e Santana do Livramento não é apenas uma coadjuvante, como muitos pensam.

Todos os finais de semana e feriadões, milhares de turistas aportam em nossa terra, e entre eles gente da mais pura cepa, como professores universitários, pesquisadores e pessoas de alta qualificação intelectual.

Pois acabo de ouvir de um amigo, renomado pesquisador universitário, um relato de absoluto estarrecimento com o nível de deterioração dos documentos que guardam a memória de nossa cidade. Para mim, que pesquisei recentemente nos arquivos remanescentes de Santana, não foi novidade. Mas vindo de uma pessoa alheia (e inconformada) com nossa realidade, me chocou novamente.

Disse-me esse amigo, que aproveitou o dia para visitar os museus da cidade e fazer o levantamento de material bibliográfico para uma pesquisa que realiza sobre a região, afinal, nem só de whisky importado vive o homem.

Pois ele se mostrou abismado com o péssimo estado de conservação de livros e atas históricas, além de jornais e revistas do início do século que estão guardados (?) no Museu David Canabarro.

Quando por lá passou, há menos de duas semanas, deparou-se com uma sala úmida e vertendo água, onde os jornais históricos estavam empilhados, junto a livros e revistas que deterioram-se dia-a-dia.

Arquivos de jornais como O Republicano, A Platéia e Folha Popular, entre outros mais raros e livros centenários estão se perdendo para sempre!

Além disso, naquele dia o prédio estava sem água, sem papel higiênico e, pasmem, a única assinatura de um jornal diário que ali chegava, era de propriedade de uma funcionária. Como ela resolveu cancelar a assinatura, nem mais o jornal diário chega ao Museu, comprometendo a realização do novo acervo.

Mas não me foi de todo surpresa esse relato porque já tinha experimentado, há algum tempo atrás, a mesma sensação.

Ao pesquisar na Biblioteca Rui Barbosa, no outro extremo da Praça General Osório, deparei-me com a mesma situação.

Arquivos de jornais empilhados em uma sala vazia, jogados em um canto, deteriorando-se com a extrema falta de acondicionamento. Há dois anos atrás, quando ali pesquisava, ouvi de um funcionário que “muitos desses papéis velhos foram queimados, porque estavam cheio de ácaro e não serviam para nada!”.

Agora, pensem:
Quando se instala em nossa cidade um Núcleo de Estudos Fronteiriços.
Quando dois presidentes por aqui passam e abençoam a integração político-cultural.
Quando nos aproximamos da academia uruguaia em um esforço de pesquisa em comum.
Quando sabemos que a cultura – e aqui leia-se a memória – é o maior capital intelectual que podemos oferecer, inclusive para alicerçar o turismo...é assim que se procede?

Vejam a presente luta pela recuperação da Praça Flores da Cunha. Até o momento, meia dúzia de vendedores ambulantes que tomaram o espaço público estão dando de goleada na população, chamados de “empreendedores” pelo Executivo municipal.

Por outro lado, uma fatia valiosa da memória da nossa cidade e de nosso povo está praticamente “sequestrada” no Museu da Folha Popular. Ali, documentos que não tem preço, pois documentos dessa ordem não podem ser precificados como uma mercadoria, estão sabe Deus como. Já estarão perdidos? Será que ainda resistem? Não se sabe, pois aquele local todos estão proibidos de acessar.

Conforme me afirmou um escritor santanense, a família do historiador Ivo Caggianni, que muito fez pela memória de nossa terra, dessa maneira demonstra não estar à altura desse legado. Nas muitas tentativas que fiz para pesquisar naquele valioso acervo, sempre recebi um não. Algumas vezes, dizia-se que o Museu estava à venda, mas não se achava comprador. Noutras, apenas o silêncio.

Ora, praticamente todo esse acervo do Museu da Folha Popular foi doado ao historiador pela comunidade, que via nele um “fiel depositário”, que saberia guardar para as futuras gerações esse precioso material, fundamental para repensarmos nosso passado e planejarmos o futuro.

Ninguém pode ser dono de algo que diz respeito à memória coletiva, a memória de um povo. Ainda assim, não seria o caso do poder executivo planejar uma maneira de adquirir esse acervo e preservá-lo para as futuras gerações? Ou vamos esperar tudo desparecer?

Existem linhas de financiamento federais, programas do Ministério da Cultura para esse fim, é só ter olhos para ver e disposição para vasculhar essas páginas na Internet.

Todo esse valioso material deveria ser reunido e acondicionado em uma câmera fria, com arquivos planejados para este fim, pois a refrigeração é a única maneira de salvar esses papéis, e posteriormente escaneados. É caro? Ou simplesmente não é prioridade?

Pois assim caminhamos, observando nosso riquíssimo acervo se perdendo, sendo roubado ou leiloado, e nosso futuro escapando pelas mãos.

A foto acima é do jornal santanense O Republicano, criado por Francisco Flores da Cunha no ano de 1941, em oposição ao Estado Novo e em apoio ao ex-governador José Antônio Flores da Cunha, então exilado no Uruguai. Posteriormente tornou-se porta voz da recém criada UDN (União Democrática Nacional). O jornal, fundamental para a compreensão de nosso passado recente, está virando pó.

Artigo pescado do blog Jogos da Memória, editado pelo jornalista e historiador santanense Marlon Aseff, autor da obra "Retratos do Exílio - solidariedade e resistência na fronteira" (Edunisc, 2009).

Um comentário:

Anônimo disse...

Se a situação dos arquivos da fronteira está prestes a ser um amontoado de lixo, o que resta aos passeios públicos?
Pessoal vamos avante, a sociedade civil organizada pode tudo, pode até tirar um presidente, não vai poder sacar fora esse lamentável prefeito e seus cumplíces!!! e esse modelitos de vereadores q temos made in radio, o que se poderá esperar?
Um santenense que ama seu chão, sua terra.